Um apanhado histórico sobre a dramaturgia brasileira, por Marcílio Moraes.

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Um apanhado histórico sobre a dramaturgia brasileira, por Marcílio Moraes.

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Abaixo, a íntegra da fala do presidente da GEDAR, Marcílio Moraes, no Congresso anual da Writers & Directors Worldwide, realizado em Veneza (Itália), fazendo uma abordagem histórica sobre os principais desafios a serem superados pela dramaturgia brasileira com relação ao direito autoral.

Marcílio Moraes

Caros colegas,

A primeira dificuldade do dramaturgo brasileiro é a língua. Pouca gente entende o Português, o que me obriga a me arriscar no Inglês. Permitam que me apresente. Meu nome é Marcilio Moraes. Comecei minha carreira nos longínquos anos 60, escrevendo contos, com os quais nada ganhava, e histórias de aventuras vendidas em bancas de jornais, assinadas com pseudônimo, que me rendiam alguns míseros tostões, mas que me divertiam com a oportunidade de criar cowboys hamletianos e coisas assim. Depois, comecei a escrever para o teatro. Ganhei prêmios e consegui montar algumas peças.

Nesta época, nós tínhamos no Brasil uma sociedade gestora dos direitos dos escritores que funcionava razoavelmente bem, a SBAT, Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Apesar disso, nunca consegui ganhar nada significativo com minhas peças. Para viver, tinha que trabalhar em outras atividades, além dos livrinhos de aventuras – dava aulas, fazia publicidade como free lancer, revisão de textos, empregos públicos, etc.

Para a maior parte dos autores, sempre foi muito difícil viver de teatro no Brasil, situação que ainda permanece e de que falarei adiante. Naquela época, me dei conta – já com três filhos para criar – que o único jeito de ganhar dinheiro como escritor era entrar para a televisão. Estávamos nos anos oitenta e a televisão se tornara um gigantesco sucesso no Brasil, especialmente pela dramaturgia, no caso telenovelas.

As telenovelas começaram a ser produzidas e exibidas no Brasil em meados dos anos 60 e se consolidaram nos setenta, de maneira avassaladora, especialmente através da TV Globo. O impacto delas sobre o teatro foi enorme. Para ter uma ideia do poder das telenovelas , basta dizer que todo o horário nobre das três maiores redes do país é ocupado por telenovelas, desde aquela época. A maior delas, TV Globo, exibe telenovelas das cinco horas da tarde até 11:30 da noite.

Não tive nenhuma dificuldade em me adaptar ao novo meio. A telenovela é uma obra do escritor, se baseia fundamentalmente no diálogo, o que não oferece dificuldades para quem vem do teatro. A diferença é que, no teatro, almejamos a concisão do diálogo e na telenovela, o contrário, precisamos ser prolixos, já que a tarefa é preencher mais de 30 páginas em cada um dos 200 capítulos, ou mais.

Outro paralelo que se pode estabelecer entre o teatro e as telenovelas é que a gravação das cenas no estúdio, com todas aquelas câmeras, cria um espaço parecido com o palco, para o ator, que precisa se valer da sua capacidade histriônica para sobressair no ar. Assim sendo, fiquei na televisão, que além de tudo apresentava a vantagem de pagar muito bem. Não que tenha abandonado o teatro. Algumas peças minhas continuaram tendo eventuais montagens e escrevi dois ou três textos, que não consegui encenar, principalmente por exigirem grande elenco, o que no teatro brasileiro atual é um grande problema. Mas o fato é que fiquei na televisão, onde estou até hoje. Ao longo desse tempo, escrevi uma dezena de telenovelas, séries, minisséries e programas unitários.

Só não escrevi ainda um musical. O que é uma frustração, porque a primeira peça que escrevi era um musical, misturando cenas dialogadas com números musicais. O título era “Só engorda quem negocia”, o que denunciava uma certa influência brechtiana. Lembro dessa peça para introduzir o primeiro item que eu gostaria de colocar, a meu ver fundamental quando se fala de teatro e de arte em geral, que é a liberdade de expressão.

Com esta minha primeira peça tive também minha primeira experiência com a censura. A peça foi inteiramente proibida. Naquela época vivíamos sob a ditadura militar, que durou de 1964 até meados dos anos oitenta. Quando iniciei na televisão, ainda tínhamos a censura oficial. Tudo que escrevíamos ainda precisava ser submetido aos censores. Hoje não temos mais a censura oficial. Mas não acho que a plena liberdade de expressão esteja definitivamente conquistada. Me preocupa um pouco a pressão de um certo moralismo difuso na sociedade.

Há poucas semanas uma exposição de arte no Sul do país foi fechada pelo banco que a patrocinava por força da pressão de grupos ditos defensores da moral e dos bons costumes. Claro que todo mundo tem direito de gostar e de não gostar, de aplaudir e de se indignar, mas a liberdade do artista de criar e expor sua obra tem que ser preservada acima de tudo. Na minha experiência pessoal, tenho tido algumas dificuldades com a direção de dramaturgia da empresa pela qual sou contratado por conta de uma certa orientação religiosa que passou a prevalecer. Há três anos não consigo emplacar um projeto. O princípio da liberdade de expressão é crucial para o autor de teatro e para todos escritores e artistas, e precisa ser sempre apregoado.

Voltando ao teatro no Brasil, acho que a primeira informação que precisa ser passada é a de que a sociedade de gestão dos direitos dos autores teatrais no Brasil, a SBAT, Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, que neste ano de 2017 completou cem anos de existência, vive hoje uma situação agônica. Está reduzida a uma salinha, tem uma dívida gigantesca e a maior parte dos autores e herdeiros dos grandes autores se afastou. Uma lástima.

Como pôde uma instituição centenária chegar a este ponto é a pergunta. Por que a SBAT não tem hoje a dimensão, por exemplo, da ARGENTORES? Vou arriscar uma explicação em meu nome. O grande problema da SBAT aconteceu na década de oitenta, quando a indústria audiovisual, especialmente a televisão, se impôs no país. A SBAT não soube ou não pôde acompanhar esse movimento. Se tivesse se tornado gestora também dos direitos dos autores do audiovisual , sua história teria sido outra. Hoje teria a força da Argentores e de outras sociedades brasileiras de gestão dos músicos.

A SBAT não deu este passo decisivo por duas razões, no meu entender. A primeira de ordem administrativa. A direção da entidade não teve visão ou não teve energia para estender suas atividades para o audiovisual. Talvez tenha sido mesmo difícil, primeiro porque grande parte dos autores, inclusive eu, tinha migrado para a televisão. E aí há que fazer um parêntesis e considerar a especificidade da televisão brasileira. Na década de oitenta, a TV Globo havia se tornado praticamente absoluta na televisão brasileira, sem nenhuma concorrência significativa. E sendo a telenovela, gênero predominante, quase único, uma obra do escritor, os escritores eram muito bem pagos, o que desestimulava o movimento associativo. E ainda para agravar a situação, no Brasil, as grandes emissoras – e quando falo grandes emissoras me refiro quase que só à Globo – as emissoras, repito, são também as produtoras dos conteúdos que exibem. Então o contrato do escritor é ao mesmo tempo com o produtor e com o exibidor. Neste quadro, qual a relevância de uma sociedade gestora para arrecadar direitos de exibição para os autores-roteiristas.

Creio que isto explica, pelo menos em parte, a desorganização da categoria e o porquê de nós, autores, termos deixado a SBAT se enfraquecer a ponto de, na década de noventa, passar por uma crise administrativa, com desfalques e roubalheiras que levaram a entidade a uma situação pré-falimentar e ao desprestígio interno e internacional. Os efeitos do enfraquecimento, da quase morte da SBAT, sobre o teatro são bem visíveis hoje.

Neste sentido, colhi a opinião de alguns dramaturgos e dramaturgas atuantes na cena brasileira, inclusive a pessoa que heroicamente ainda tenta manter vivo o que restou da SBAT. A opinião unânime é que a consciência dos direitos, tanto patrimoniais quanto morais, diminuiu muito no país, inclusive pelos próprios autores. A conclusão é que os autores teatrais não têm hoje, no país, uma representação suficiente, digna da magnitude do fenômeno teatral brasileiro. A boa notícia é que parece que está havendo uma movimentação entre os novos dramaturgos para recuperar esta representação e este instrumento de afirmação dos direitos dos escritores de teatro.

E assim, chegamos à questão da carreira do autor teatral. O Brasil é um país muito grande, mais de 200 milhões de pessoas, espalhadas em 8 milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados. Há uma só língua oficial, mas no país são faladas mais de 180 línguas, considerando as línguas indígenas, sem falar em diferenças dialetais. Ou seja, temos uma diversidade cultural, a qual nem de longe posso abarcar. Posso dizer que nosso teatro tem 500 anos. Já nos primeiros anos de colonização, um padre jesuíta e brilhante dramaturgo, chamado José de Anchieta, escrevia e encenava peças para catequizar os nativos. Certamente, ele não se importava com direitos autorais. Das artes cênicas praticadas hoje em dia pelos diversos grupos indígenas do país, não tenho condições de falar.

Do teatro do qual falamos aqui, há diversas realidades. Há o teatro das grandes cidades, que ainda é possível subdividir em teatro do centro urbano, e o teatro das periferias. O teatro dos centros urbanos se pode genericamente dizer que é o teatro comercial. Aquele autor da visão tradicional, o dramaturgo pensador, que escreve no seu gabinete e vive dos direitos auferidos pela encenação das suas peças, praticamente não existe mais.

A nova geração de dramaturgos em geral produz suas peças e não raro também as dirige e nelas atua. Muitas vezes eram atores e atrizes, que já se produziam, e que começaram também a escrever os textos. O direito autoral assim gerado, por suposto, não passa por nenhuma associação arrecadadora. O próprio autor produtor se paga. Ainda há também, se bem que poucos, produtores, no sentido mais tradicional. A respeito desses, as reclamações mais constantes que ouvi é que se interessam sobretudo por textos de autores estrangeiros que fizeram sucesso em outros países. O autor nacional fica em segundo plano, daí a opção de muitos de produzirem eles próprios seus textos.

Há que considerar que em grande medida esse teatro, tanto o produzido pelos próprios autores quanto o de iniciativa de produtores, depende em sua maior parte de verbas públicas. O fato notório aí é que nesses patrocínios não é reservado para o escritor nenhum percentual. Ou seja, exceto quando é o próprio autor que produz, toda a produção acontece na esfera dos recursos do Estado, exceto o pagamento do autor, que fica dependendo do risco capitalista. E aí há que lembrar que o governo, quando patrocina, determina o limite do preço dos ingressos, geralmente baixo, o que reduz ainda mais os rendimentos do autor.

Já o teatro das periferias tem características diferentes e na verdade não me sinto seguro para falar dele. Sei que há muitos trabalhos de criação coletiva, em que a figura do escritor se dilui. Este tipo de teatro também se faz no centro urbano. Sei também que existem produtores capazes de reunir sob uma lona públicos de mil e quinhentas, duas mil pessoas para assistir a um espetáculo. Não sei dizer em que medida, nessas manifestações, se respeitam os direitos do escritor. Peças minhas foram, e ainda são eventualmente encenadas por esses grupos de periferia. Em algumas vezes me pedem autorização e pagam os direitos. Em outras, nem tomo conhecimento ou venho a saber que aconteceu anos depois.

A falta de uma sociedade de autores teatrais bem estabelecida, com extensa capilaridade no país, o que a SBAT tinha, décadas atrás, dá margem a esse tipo de descontrole. O que me encanta nessas montagens de periferia muitas vezes são as leituras que fazem das peças, totalmente inesperadas e mesmo inconcebíveis para mim. Aprendo muito assistindo essas montagens.

No Brasil existe também um tipo de autor teatral que atua apenas no âmbito da sua cidade. São autores que escrevem, produzem, dirigem e muitas vezes interpretam suas peças, igual a outros dos grandes centros, mas que e não têm nenhum interesse em levar seus trabalhos para as metrópoles. Como trabalham em cidades pequenas mas ricas do interior de grandes estados como São Paulo, Paraná e Minas Gerais, conseguem um rendimento suficiente para viver e usufruem da tranquilidade de uma vida sem maiores estresses. A questão dos direitos autorais não chega a se colocar para esses autores.

E tem aqueles autores de teatro que também trabalham na televisão, geralmente pessoas que moram nos grandes centros. Eu diria mesmo que a maior parte dos escritores de teatro dos grandes centros aspira a trabalhar na televisão, que é o meio que oferece maiores condições de sobrevivência. Assim como foi comigo trinta e tantos anos atrás, continua sendo nos dias de hoje. O perigo é que a televisão é muito absorvente e é difícil continuar fazendo teatro quando se está nela.

Do ponto de vista dos direitos autorais, talvez ocorra um fato curioso. Quem me falou sobre isso foi um famoso autor teatral brasileiro, chamado Bosco Brasil. Ele eventualmente faz televisão, inclusive trabalhou comigo numa novela, mas continua fiel ao teatro. Ele me disse que a atual expansão do mercado de televisão – hoje está se desenvolvendo no Brasil uma indústria independente de televisão que não existia até poucos anos atrás – e essa expansão ao dar oportunidade aos jovens dramaturgos também lhes traz maior consciência dos direitos autorais. Como eu já disse, a teledramaturgia brasileira, ao privilegiar as telenovelas, trouxe como consequência grande prestígio para os escritores. E esse prestígio se refletiria de volta nos jovens escritores de teatro.

Há que constatar também o grande crescimento do teatro musical no Brasil. O sucesso dos espetáculos importados da Broadway criou um forte mercado, desenvolveu um cast fabuloso e criou uma notável estrutura para esse tipo de encenações, o que também influenciou a produção de espetáculos musicais geralmente em torno de grandes figuras da música brasileira. Mas que eu saiba, ainda não temos dramaturgos estabelecidos como autores de textos para espetáculos de dramaturgia musical, estilo Broadway. Ouvi dizer que em São Paulo foi criado um curso para escritores com esse propósito. A confirmar.

E assim chegamos à importante questão: o que ainda torna o teatro atrativo o suficiente para os autores? Maior liberdade criativa? Posição privilegiada na equipe? A meu ver, o grande diferencial do teatro, o que o torna único e garante sua perenidade é o contato direto com o público. Nada, nenhum aparato, nenhum deus ex machina tecnológico pode superar a relação direta do ator e da palavra do autor com o público.

Curiosamente, neste particular, é possível fazer um paralelo com as telenovelas, tal como são feitas no Brasil. Porque no Brasil as telenovelas vão ao ar enquanto são escritas. É quase como se acontecessem ao vivo. Geralmente, a novela começa a ser exibida quando o autor está escrevendo o vigésimo ou trigésimo capítulo. Eu prefiro ter no máximo vinte capítulos de frente em relação ao que vai ao ar. Essa forma de fazer a novela estabelece uma troca dinâmica e rica entre o autor e o público, porque o autor recebe as reações do público, não apenas pelos índices de audiência, mas também por mensagens, críticas na imprensa e nas redes sociais, comentários de rua, etc. Com isso é possível corrigir plots que não deram certo, valorizar os personagens de maior empatia, etc.

Ou seja, de alguma forma, o público influencia o que o escritor escreve e é por ele conduzido no decorrer do próprio espetáculo. Creio que na antiga Commedia Dell Arte acontecia alguma coisa parecida. Os atores tinham um roteiro básico da história e o modificavam de acordo com o público para o qual se apresentavam. Mas o imperativo comercial na televisão é soberano, o que restringe muito a temática e a liberdade do autor. Sob este ponto de vista,o teatro oferece uma liberdade e uma independência que o escritor dificilmente terá em outros meios, exceto a literatura.

O trabalho do escritor, seja em que veículo for, sempre influencia a sociedade. No Brasil, escrevendo uma novela no principal horário, você pode atingir alguma coisa perto de cem milhões de pessoas. No teatro, produzindo seu próprio texto, se você atingir dois ou três milhares já está muito bom. Apesar disso, eu desconfio que eventualmente o teatro pode influenciar mais a sociedade que a televisão, porque na televisão o escritor tem que necessariamente trabalhar ao nível do senso comum, do já conhecido, com pequena margem para a ousadia e a novidade, enquanto no teatro pode se arriscar a dizer o inaudito, a desafiar a inteligência e a sensibilidade do público. Mas eu não diria que os autores teatrais brasileiros têm poder significativo para influenciar a sociedade, como um todo.

Apesar de conceitos como “desconstrução”, “teatro físico” e o teatro sob encomenda, creio que o texto dramático em sua forma clássica ainda tem lugar no teatro e em grande parte permanece sendo o iniciador do fenômeno teatral. Não é uma percepção apenas minha. Dramaturgos consagrados e também os jovens incluídos no que se classificou, no Rio de Janeiro, como “Nova Dramaturgia” também veem assim. Segundo essas pessoas, a palavra ainda é o elemento iniciador, por excelência, do acontecimento teatral.

Para finalizar, o que a W&D pode fazer pelo autor teatral brasileiro. Como mostrei, dada a fragilidade atual da entidade representativa, o escritor de teatro no Brasil se ressente da pouca difusão de suas obras no plano internacional, o que agrava as naturais dificuldades de uma dramaturgia escrita numa língua, o Português, que ainda não teve a expansão que merece no universo cultural.

Se a W&D pudesse nos ajudar no sentido de tornar mais conhecida no mundo a dramaturgia brasileira, seria uma ação de alta relevância.
Agradeço à Writers & Directors e especialmente à Ms Malgorzata pela oportunidade e a todos os presentes pela paciência em me ouvir.